“…Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa.
Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.
Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor.
Lágrima é raiva derretida, raiva endurecida é tumor.
Lágrima é alegria derretida, alegria endurecida é tumor.
Lágrima é pessoa derretida, pessoa endurecida é tumor.
Tempo endurecido é tumor, tempo derretido é poema…”
— Poemas Presos – Viviane Mosé
Você já deve ter ouvido que viver é uma arte. Mas no que consiste essa arte? Sem dúvidas, quem já conviveu com um artista, a princípio, se espanta com a maneira como ele enxerga o mundo. A capacidade de ver coisas onde quase ninguém percebe juntando partes aparentemente desconexas para, assim, transformar ideias em obras é, no mínimo, encantador. Parece mágica. Pois assim também acontece na arte de viver. Não é uma tarefa fácil, e muitos livros já foram escritos a esse respeito. Epicteto (55-135d.C.), um filósofo estoico de cidadania romana, possui uma obra magnífica sobre a arte de viver e que obteve uma releitura da escritora e filósofa americana Sharon Lebell que vale a pena ler e reler.
Mas, como ia dizendo, é particularmente difícil ter uma atitude positiva quando o caos nos faz em pedaços e nosso mundo cai. Juntar as partes e dar um sentido ao que restou é o trabalho mais severo que podemos encarar na vida, a verdadeira alquimia. Se viver é uma arte a dependência química é o fantasma do bloqueio criativo.
No programa dos 12 passos, a antessala para um segundo nível de recuperação é o momento da escrita da história pessoal. O propósito em escrever a própria história é, segundo o livro azul, arrumar a confusão e a contradição da vida do dependente químico. Para que se retome a direção da intensidade das paixões, se ordene os gestos, se proponha um alvo, se construa um foco e se elabore os excessos é preciso antes que se saiba quais paixões, quais gestos, qual alvo, qual foco e quais excessos devem ser trabalhados para que o sujeito dirija o jogo de forças que o constitui. Seria como um processo de exorcismo dos demônios: o acusador ressentido e o divisor que habita o caos emocional.
Podemos definir o ressentimento como uma constelação de afetos reprimidos, tais como: mágoa, raiva, inveja, desejo de vingança. Sua função está no prazer de acusar para preservar a autoimagem e se isentar das responsabilidades. Quando não queremos esquecer uma mágoa há, quase sempre, um interesse nessa condição. Sentir-se o injustiçado, a vítima, muito acima dos outros, se achar puro é muito prejudicial porque, se vem junto com o impedimento de exercer “justiça”, ele se volta contra o próprio sujeito. O folheto “Recuperação e Recaída” diz: “Nossa resistência à mudança parece arraigada e somente uma explosão nuclear provocará alguma mudança, ou iniciará um novo curso de ação”. Dizendo em outras palavras, para que o redimensionamento do campo da experiência possa existir é necessário que o mundo desabe, porém a travessia da angústia é o caminho para a liberdade. Agir é, antes de tudo, dirigir os próprios impulsos e paixões, organizar o espaço emocional, é um jogo entre satisfação e privação, é na dosagem desses ingredientes que se dá a alquimia da recuperação, aí mora o desafio maior. Se conseguirmos reconhecer em nossa vida a capacidade de afetar e sermos afetados, e nesse movimento de expansão e retração reconhecer também nossa impotência ao bloquear esse movimento com as drogas, quando reconhecemos a morte da forma antiga podemos nos descontruir e produzir uma nova forma, fazendo de nossa vida uma arte.
— Por Kleber da Cruz